O Meu Desejo

Em algum lugar do sistema solar, um ser está sozinho. Ele opera uma máquina, quebrando pedras, analisando fábricas e transportando objetos. Essa é sua vida. Mas será que deveria ser assim?

O Meu Desejo

Bob vivia uma vida normal, até ser abduzido e levado para longe da terra. Ele sentiria que sua vida havia mudado totalmente, caso lembrasse de algo do passado. Sua memória foi apagada e ele foi colocado dentro de uma máquina para operá-la. A máquina tinha um formato prático, com espaço suficiente para Bob dentro dela. Ligados à máquina, inúmeros braços estendiam-se, cada qual com um instrumento diferente em sua extremidade.

Ele acordou dentro dessa máquina e, ao abrir os olhos, viu um painel e uma tela mostrando o mundo exterior. Não reconhecia nada, não compreendia nada daquilo, mas também não sabia o que pensar ou sentir. Ele reparou que o painel tinha várias colunas de luz e cada uma possuía uma figura em cima. As colunas estavam com todas suas luzes acesas. Depois de um tempo, algumas dessas luzes foram se apagando de cima para baixo, como se fossem em algum momento apagar-se totalmente.

Bob começou a ser importunado pela máquina. No começo, eram pequenas batidas em seu corpo que foram ficando mais agressivas. Ele começou a levar pequenos choques que também foram aumentando de intensidade. Enquanto isso acontecia, ele percebeu duas coisas. A intensidade dos estímulos mudava com o número de luzes restantes no painel. Ele notou também que os movimentos de seu corpo eram traduzidos em movimentos de braços ou da própria máquina.

Ficando sem atitude por horas, sem saber o que fazer, ele acabou recebendo um choque tão forte em seu dorso, que o movimento causado fez um dos braços da máquina bater em uma rocha, quebrando-a. Isso levou algumas luzes a acenderem e os importunos reduziram. A figura acima dessas luzes era de uma rocha. Bob entendeu que devia buscar aqueles objetos para reduzir a dor. Em outras colunas de luzes, haviam outras figuras, como componentes de máquinas, fábricas, depósitos, dutos e caixas.

Ele aprenderia mais tarde que nem sempre era simples reacender as luzes. Ele teria de usar combinações de instrumentos, em seqüências corretas e operá-los apropriadamente. Quando a figura da fábrica estava lhe causando problemas, ele aprendeu que deveria ir até uma fábrica e encaixar os braços em diferentes buracos. Ele tinha que usar o braço correto e movimentá-lo precisamente nos encaixes. Os braços eram muitos e as quantidades de movimentos que tinha de fazer com o corpo para controlá-los era enorme. Como Bob já não conhecia nada além daquilo, as tarefas foram sendo dominadas uma a uma.

Depois de alguns anos, ele já conseguia manter as luzes em níveis bem elevados e começava a receber agrados da máquina. Tubos foram ligados a Bob e tudo de necessário para sua sobrevivência era introduzido por eles. Além disso, esses tubos também levavam vários tipos de estimulantes. Bob sabia que quanto mais luzes mantivesse acesas mais ele sentiria prazer. Ele ficou profissional naquilo.

A vida de Bob estava bem, pelo menos nessa nova realidade, ele sentia-se bem. Às vezes ele via outras máquinas andando pelo terreno, mas os conjuntos de braços eram bem diferentes. Ele sempre verificava isso. Em sua mente a máquina toda era uma extensão dele mesmo. Ele achava que se uma máquina tivesse os mesmos braços, ela seria como ele. Não sabia, no entanto, o que faria se encontrasse uma assim, só gostaria que isso acontecesse, por algum motivo. Essa vontade foi crescendo e começou a tomar toda sua mente. Ele vagava pelo terreno, deixando as luzes em segundo plano, somente sendo lembrado delas quando recebia um choque ou um impacto.

Foi nessa época que ele começou a ouvir algo em sua mente. Eram coisas sem sentido, incompreensíveis, mas sabia que não era ele mesmo. Essa voz tentava interagir com os pensamentos dele e, aos poucos, começou a dizer coisas que faziam sentido. A voz falava sobre as coisas que ele conhecia. Falava sobre as figuras, como manter as luzes acesas, as outras máquinas, o terreno e a localização dos objetos. Ela ajudava Bob em diversas tarefas. Isso deixava-o feliz, sem precisar de estimulantes. A voz depois disso, começou a explicar coisas novas para Bob. Era complicado, mas Bob ouvia atentamente e tentava imaginar. Assim, a voz conseguiu explicar que ela não era como ele e ele não era dali. Ela explicou que ele vinha de um lugar muito distante que aquela máquina, onde ele residia, nunca conseguiria chegar e que havia outros como ele, mas que a parte externa, a máquina, não era necessária.

Bob ficou chocado com as revelações. Era difícil de acreditar. Ele havia passado toda sua vida enclausurado, sem saber disso. Ele se sentiu usado por aquela casca. Um escravo daquelas luzes. Ele queria se libertar para conhecer outros como ele e interagir. Bob pediu isso àquela voz. Mas ela disse que ela não poderia fazer isso, ela só conseguia conversar, não podia movimentar nada longe de si mesma. Mesmo assim, não adiantava pedir à terra que viesse buscá-lo. Eles ainda não conseguiriam chegar até ele. Na verdade, demorariam muitas vidas até que isso fosse possível e seja lá o que tenha o levado até aquele lugar e o colocado naquela máquina, não era da terra e não estava mais por perto.

O desespero tomou conta de Bob. A verdade era dura de mais para ele. Mesmo os choques e cutucões da máquina não estavam mais adiantando para motivá-lo. Os níveis das luzes estavam muito baixos e a dor era imensa, mas ele não ligava. Ele só fazia o mínimo pela máquina. Não queria mais fazer parte daquilo. Ele começou a pensar em destruí-la, mas sentia medo e hesitava. A voz voltou a ele nesse momento. Ela achou que fez mal em contar tudo aquilo. Não imaginava que isso pudesse levá-lo a ficar tão deprimido. Ela só contou por que achava que ele merecia saber. Foi então que, para consertar isso, ela fez uma proposta a Bob.

A voz disse a Bob que poderia levá-lo de uma forma especial à terra se um evento raro acontecesse por lá. Ele não iria para lá com seu corpo real, mas não sentiria a diferença. Se um ser na terra tivesse uma morte de consciência, nesse momento a sua própria poderia tomar aquele corpo e controlá-lo. Em contrapartida, o corpo dele, dentro da máquina, ficaria na mesma condição e provavelmente morreria em algumas horas. Não haveria como voltar antes disso. Ele poderia aproveitar pouco tempo, mas era o máximo que ela poderia fazer por ele.

Bob não aceitou a proposta de prontidão. Ele pediu tempo para pensar e durante muito tempo ele pensou. Sabendo dessa possibilidade, ele conseguiu se acalmar e lentamente sua vida estabilizou. Ele não voltou mais a falar com a voz por um tempo e ela também não entrou mais em contato com ele. Um dia, Bob voltou a pensar no assunto e questionou a voz sobre o que aconteceria depois dele morrer. A voz disse que da mesma forma que ele chegou até ele, por ele estar sozinho, um outro ser maior que ela mesma, havia chegado nela e eles conversaram. Aquele ser maior conhecia muitos outros seres ainda maiores ainda e essa questão era uma das mais importantes para todos. Embora não existisse uma resposta certeira, era consenso de que com grande probabilidade a morte do corpo não era o fim da consciência.

A resposta sendo incerta postergou a decisão de Bob. O tempo passou. Vivendo dentro daquela máquina, a vida seria muito longínqua. Outros muitos anos se passaram, além do permitido na terra para uma vida normal, e ele voltou a lembrar daquela proposta. Naquele terreno já estavam esgotados os desafios, as questões e as novidades. Tudo havia se transformado, porém as tarefas eram as mesmas. Ele tinha tempo de sobra pra imaginar o que poderia fazer na terra. Sua curiosidade ficou grande de mais e as sensações, que a máquina lhe provia, já não surtiam o mesmo efeito. Bob chamou a voz e aceitou a proposta.

Ele não foi enviado à terra imediatamente após aceitá-la. Isso dependia de um acaso, o qual poderia nem acontecer durante a sua vida. Na verdade, de quando a oferta foi feita até aquele momento, ele não tinha perdido nenhuma chance. Passaram-se outros anos e nada aconteceu. Quando Bob já quase não se lembrava mais da proposta, de repente, sem aviso, ele foi enviado à terra.

A luz e o frio foram as duas primeiras sensações. Havia muitas formas se movimentando, algumas tocando nele. Os sons eram muitos, alguns pareciam ser direcionados a ele. Estava tudo confuso. Bob nunca tinha visto, ouvido ou sentido nada daquilo. Ele não sabia como agir. Ele não sabia nem como se movimentar. Durante horas ele ficou ali, se debatendo, aprendendo a usar seus próprios membros e tentando desaprender o que achava que era seu corpo. Não haviam mais braços mecânicos, luzes ou uma tela.

Após somente algumas horas, ele já conseguia se mover com leveza pela água. Podia sentir o fluxo por seu corpo. A sensação era única, nenhuma química injetada em seu corpo poderia dar o sabor daquela experiência. Ele havia nascido para aquilo. Sentiu um êxtase como nunca havia sentido. Estava finalmente feliz! Ele saltou da água, mesmo sem saber como, projetando seu corpo inteiro para fora dela. Nesse breve momento, ele viu toda sua existência sumindo quase completamente e uma tranqüilidade infinita tomando conta dele. Ele caiu de volta à água e tudo começou a se apagar. Em sua mente o tempo passava cada vez mais devagar e aquela sensação de liberdade ia se eternizando.

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