O Meu Filho

Um cérebro confinado numa realidade formada de equações e símbolos, movida a inferências lógicas e provas matemáticas? O que um experimento desse poderia trazer?

O Meu Filho

Jean foi a um grande shopping de Campinas para almoçar. Nesse horário, milhares de pessoas estavam lá para fazer o mesmo que ele. Era cômodo, o shopping possuía muitas opções de restaurantes e era localizado bem próximo aos pólos tecnológicos. Jean trabalhava em uma empresa de desenvolvimento de softwares, mais especificamente, daqueles que exploravam ao máximo as novas tecnologias de múltiplos processadores. Isso era motivo de grande orgulho para ele, pois as tarefas ainda eram muito desafiadoras nesse ramo de programação.

Naquele momento, junto a seus colegas de trabalho, ele sentia-se especialmente orgulhoso. Olhou à sua volta e, de repente, desanimou. Um de seus subordinados notou isso e achou uma boa oportunidade para bajulá-lo. Só uma demonstração de interesse já fez Jean explicar-se elaboradamente. Ele achava um grande desperdício todas aquelas mentes ociosas a seu redor. Muita delas passariam toda existência sem produzir nada minimamente intelectual. Não resolveriam nenhum problema não-trivial, somente desafios repetitivos do dia-a-dia. Ele sonhava com o dia no qual poderia usar esse tempo ocioso de forma útil, no seu ponto de vista, assim como os múltiplos processadores o faziam. “Quanto do potencial do cérebro é desperdiçado?!” Indagou.

Aquela empresa, onde Jean trabalhou, participou muito tempo depois do desenvolvimento de vários módulos que integrariam as principais comunidades virtuais em um grande mundo virtual, onde a maioria das comunicações mundiais se fariam daí em diante. A tecnologia 3D já estava totalmente desenvolvida, não sendo mais possível diferenciar o real do virtual. As pessoas podiam vestir sensores e emissores e todos os sentidos eram estimulados à perfeição. A experiência virtual tinha se igualado perfeitamente à experiência real, ou melhor dizendo, já a havia superado. Se não fossem as lembranças de como a realidade era limitada, não seria possível mesmo diferenciá-las.

Nesse mesmo tempo, uma outra empresa vizinha à de Jean que trabalhava com bio-informática havia desenvolvido o caixão virtual. Um nome sugestivo, pois significava a morte para o corpo e manutenção do cérebro vivo no mundo virtual. Esse caixão era totalmente protegido contra contatos externos, reduzindo em muito as complicações e aumentando em muito a longevidade da pessoa. Em geral, a sobrevida era quadruplicada e não havendo um corpo, a necessidade de suprimentos era extremamente reduzida.

De fato, a pessoa que escolhesse colocar seu cérebro naquele caixão viveria somente no mundo virtual. Como a maioria das pessoas reais estavam conectadas a ele, essa morte planejada passaria despercebida.

A empresa de bio-informática ficava responsável por manter o caixão seguro e suprir o cérebro com as substâncias necessárias ao seu pleno funcionamento. Em troca disso, aquela cérebro-pessoa deveria trabalhar algumas horas de seu dia para a empresa, bem menos que uma jornada normal. Como todos os trabalhos que necessitavam de forças mecânicas já eram realizados por máquinas e robôs, qualquer pessoa estava habilitada a essa transição.

Os trabalhos eram os mesmos que uma pessoa real poderia desenvolver, não era como Jean imaginou, não como as executadas por um processador. E isso, o criador do caixão virtual, Ban, queria mudar. Ele conseguiu desenvolver esse caixão realizando muitas experiências anti-éticas. Rumores sobre isso se espalharam, mas nunca foram investigados em profundidade. Isso foi devido em grande parte à situação do Brasil que estava crescendo desordenadamente. A justiça ainda não possuía recursos e organização suficientes para tratar essas questões de baixa prioridade.

O que Ban queria mesmo não era um cérebro que trabalhasse como um processador, e sim como um provador matemático. Há muito tempo já era possível provar teorias com um processador,  no entanto, os métodos exigiam tempos de processamento impraticáveis e nenhum grande resultado foi obtido assim. Um cérebro humano continuava sendo a melhor ferramenta para tal tarefa. Ban sempre desejou avançar em muitos campos da ciência e suas especialidades já eram tantas e ainda insuficientes. Ele não achava possível alcançar seus objetivos dessa forma. Ele precisava de um exército de cérebros para isso. Ele começou com um.

Não foi difícil achar um cérebro de bebê. A pobreza continuava grande no Brasil e a quantia certa, da mesma forma que nos experimentos anteriores, trouxe um exemplar perfeito, ao menos de saúde. Ban poderia saber se o bebê tinha um cérebro geneticamente promissor. Ele preferiu não analisar isso. O objetivo principal era desenvolver o método de criação do cérebro, o fator ambiente era o foco. Aplicando o método, evoluindo-o, ele poderia replicar o processo inúmeras vezes.

A idéia era recorrente, Ban criaria uma realidade virtual específica para aquele cérebro. Ela não seria conectada ao mundo virtual. O cérebro estaria sozinho em um mundo de símbolos, equações e inferências lógicas. A cada avanço ou prova correta, o cérebro seria estimulado, receberia uma recompensa, sentiria prazer, uma aplicação direta das substâncias corretas. Caso cometesse erros ou não avançasse, ele sofreria, sentiria dor, seria privado dos estímulos. E nesse meio, ele viveu.

Passaram muitos anos até que o cérebro começasse a demonstrar criatividade, apresentando resultados novos. Havia muito conhecimento para ser adquirido e o processo ainda não era perfeito. Ban foi evoluindo-o conforme notou a facilidade e rapidez de assimilação em diferentes técnicas de aprendizados envolvendo formas de estimulação variadas. Ele ainda ficava receoso as vezes, pois não sabia até onde o cérebro poderia chegar com sua capacidade.

Certo dia, o cérebro provou sua primeira conjectura, uma famosa, e Ban sentiu-se como um pai ao ver seu filho andar pela primeira vez. Era um grande orgulho para ele. E foi ainda maior quando ele colheu os louros alheios daquela prova. O reconhecimento foi tremendo. Era um avanço inesperado na matemática. Nascia um novo gênio, uma mente brilhante. Isso estimulou-o a continuar o processo, esperando, mais e mais daquele cérebro. Mal podia conter-se quando imaginava o que conseguiria quando replicasse o processo e tivesse seu exército de cérebros. A humanidade avançaria séculos em uma vida e tudo estaria em seu nome. O maior gênio matemático de todos os tempos!

Algumas vezes, Ban pensou em revelar como conseguiu todos os avanços. A pesquisa em si, a forma como formatou o cérebro, já era revolucionária e esse era o mérito real dele. O Brasil estava progredindo, a justiça tornou-se eficiente. Todas suas experiências passadas, incluindo essa pesquisa, eram crimes graves. Isso apagaria suas conquistas frente à opinião pública. Ele preferiria ficar com as conquistas do exército e destruir todas evidências de como as conseguiu.

O tempo passou e ele teria formado seu exército se não tivesse encontrado o maior problema até então. O cérebro já estava chegando em sua adolescência e, para o desespero de Ban, estava cada vez mais improdutivo. Houveram ainda algumas conquistas. Nenhuma delas tão grande como aquela conjectura e isso não deixava Ban satisfeito.

No momento em que o cérebro estava praticamente sem nenhuma criatividade, Ban foi preso. Alguns de seus crimes finalmente foram revelados e ele passaria o resto da vida na prisão. A investigação descobriu sobre um número grande de indigentes que Ban havia utilizado em seus  experimentos e mesmo não encontrando os corpos, os testemunhos dos contatos e as transferências bancárias comprovaram práticas ilegais suficientes para a pena. Ban nunca revelou algo sobre o cérebro a alguém, deixou-o em seu laboratório escondido, desamparado. Ele não estava preocupado com a saúde daquele cérebro e sim se suas conquistas seriam duvidadas e o pouco que ainda lhe dava orgulho e respeito seria perdido.

Em sua vida na prisão, Ban só pensava em uma coisa, por qual a razão o cérebro parou de dar resultados. Já no fim de sua vida, ele havia chegado à uma conclusão. Ele não poderia experimentá-la, nem confirmá-la de forma alguma, era só uma idéia e não a compartilharia com ninguém. O cérebro deixou de acreditar em sua realidade. Por mais que o alimentasse com fórmulas e teoremas, a complexidade daquilo não era suficiente. Aquelas formas de pensamento não cobriam as regiões cerebrais de forma equilibrada. Não como a soma total de todas as questões enfrentadas no dia-a-dia de uma pessoa normal. A realidade do mundo era muito maior e complexa, ela envolvia inúmeras incertezas, a compreensão das pessoas, os relacionamentos, um evento improvável a cada instante. Era para esses desafios que aquele cérebro devia ter sido usado, ele foi moldado durante milhares de anos para isso. Uma vida confinado a outra realidade era brusco demais. Por isso, o cérebro desacreditou no mundo onde estava imerso, desanimou e parou.

Leave a Reply